Saúde pública e desenvolvimento nacional

Carlos Augusto Grabois Gadelha

Doutor em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenador e líder do Grupo de pesquisa sobre desenvolvimento, complexo econômico industrial e inovação em saúde (GIS/FIOCRUZ). Professor e pesquisador do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (DAPS/ENSP/FIOCRUZ); Coordenador do Mestrado Profissional em Política e Gestão de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde da FIOCRUZ e Coordenador das Ações de Prospecção (Presidência/Fiocruz). Foi Vice-Presidente de Produção e Inovação em Saúde da FIOCRUZ; Secretário de Programas de Desenvolvimento Regional do Ministério de Integração Nacional; Secretário de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde; e Secretário de Desenvolvimento e Competitividade Industrial no Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comercio Exterior (MDIC).

Por Observatório do Estado Social Brasileiro

 

 

1 – Podemos localizar, em diferentes contextos históricos e espaciais, o aparecimento do Estado Social ao surgimento de dois sistemas. O primeiro é o sistema previdenciário e o segundo é o sistema de saúde pública. É claro que há diferenças significativas entre a América Latina e a Europa. A particularidade do Brasil estaria na junção desses dois sistemas, considerando a institucionalização da Seguridade Social?

A particularidade do Brasil está na extraordinária desigualdade social que historicamente marca a sociedade brasileira e seu regime de crescimento econômico. A Constituição de 1988, inspirada na institucionalidade do Estado de Bem-Estar Social europeu, criou a Seguridade Social, integrando as políticas de Assistência, Previdência e Saúde. A Constituição inaugura assim um projeto democrático de universalização da cidadania no Brasil, a partir do qual conseguiu impor avanços a diversas políticas públicas, sendo particularmente relevantes a extensão da previdência social e a expansão do Sistema Único de Saúde. O SUS, portanto, faz parte do esforço de universalização dos direitos sociais para corrigir a enorme desproporção de acesso, a incompatibilidade inaceitável entre o avanço material do País e o bem-estar da população.

2 – A população estimada do Brasil já ultrapassa 211 milhões de habitantes. O conjunto da população, de algum modo, é protegido pelo Sistema Único de Saúde, guiado pelos princípios da equidade e da universalidade. É correto afirmar que o SUS é a pedra angular do Estado Social brasileiro?

Com certeza! O Brasil é a nona economia mundial e ousou fazer o maior sistema de saúde do mundo, garantindo universalidade de acesso e integralidade no atendimento a todos os brasileiros. Mas precisamos prosseguir e enxergar que, ao mesmo tempo em que se constitui em direito básico de cidadania, a Saúde representa 9% do PIB, 1/3 do esforço de pesquisa e inovação brasileira, gerando sete milhões de empregos diretos. Então, o SUS é simultaneamente pedra angular o Estado Social e instrumento poderoso para alavancar o desenvolvimento nacional. A Saúde normalmente é vista como despesa, mas essa visão é muito limitada. Se injetarmos recursos no SUS, isto ajuda a gerar emprego, renda, investimento, inovação e contrabalançar parcialmente os efeitos da crise sob o nosso País. Ao mesmo tempo, a saúde é área decisiva para os desafios futuros, é uma porta de entrada na 4ª revolução tecnológica. A crise em que estamos escancara a necessidade que temos de articular dentro de um plano, de um projeto nacional, a proteção social e a dimensão econômica, tecnológica e produtiva. Precisamos mudar os óculos e passar a enxergar as políticas sociais também como frentes de expansão, como elementos indissociáveis de um projeto de desenvolvimento nacional orientado às necessidades sociais. Saúde é parte da solução, inclusive de curto prazo.

3 – A crise, resultante da pandemia, colocou a mostra, ao mesmo tempo, a necessidade expansão da rede física de saúde e dependência do parque industrial brasileiro. Demonstrou, didaticamente, a simbiose entre saúde nacional e economia nacional, desnudando opções políticas de erosão do financiamento pública da saúde. É possível, do ponto de vista da indústria nacional, reverter esse processo de dependência de insumos importados?

É possível mudar esse quadro, mas precisamos enxergar as áreas sociais como frentes de expansão. A crise coloca a necessidade de juntar economistas e especialistas em políticas sociais para pensar um novo projeto nacional de desenvolvimento. Hoje temos a pandemia do coronavírus, amanhã teremos outra pandemia ou outras questões, como, por exemplo, o acesso ao tratamento de câncer, que vão sempre envolver a questão da desigualdade, a questão decisiva em ter sistemas universais e um sistema produtivo e tecnológico que dê suporte à política social.

A pandemia do novo coronavírus escancara a visão que viemos desenvolvendo na FIOCRUZ, aonde a gente renovou a forma de ver a dimensão econômica e da saúde, propondo uma mudança de paradigma da relação entre as dimensões econômica e social do desenvolvimento, que não podem ser vistas como campos separados. As dificuldades de importar produtos essenciais como ventiladores, materiais médicos, insumos dos testes para diagnóstico e, no futuro, medicamentos e vacinas, são simultaneamente questões econômicas e sociais. O Brasil não pode ter um sistema universal com uma fragilidade tecnológica tão intensa, sem uma base produtiva e tecnológica que envolva a indústria farmacêutica, equipamentos, serviços de saúde.

A partir de 2007-2008 procurou-se fazer uma politica industrial para reverter este processo. Foram realizadas até 2014 mais de 100 parcerias para o desenvolvimento produtivo. Infelizmente, em 2017, foi extinto o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde, que articulava 14 ministérios e agências como BNDES, INMETRO, FIOCRUZ. Ou seja, a institucionalidade de Estado para atuar nesta crise foi desmontada. Depois disso, foi também extinto o departamento do complexo industrial da saúde e a coordenação de equipamentos e materiais, cujas funções incluíam a área de ventiladores, EPI e dispositivos e materiais médicos essenciais ao enfrentamento do novo coronavírus. Nos últimos três anos, a base institucional e de política publica para dar respostas estruturais a esta crise foi extremamente fragilizada.

Nós temos ciência, base industrial e tecnológica e o maior sistema de saúde do mundo, que é o SUS. Tem de ter uma visão estratégica, na qual as respostas de curto prazo estejam conectadas ao objetivo de reduzir a vulnerabilidade do SUS no longo prazo, dando horizonte para os investimentos produtivos e tecnológicos do setor privado. Temos de reconstruir a capacidade de planejamento, a capacidade de coordenação do Estado e a capacidade do Brasil se desenvolver para além dos produtos primários, como soja e minério.

 

4 – O Estado Social também se caracterizou pelo investimento em ciência e tecnologia. Instituições como CNPQ, Capes, Fundação Osvaldo Cruz, Embrapa, Fapesp, entre tantas outras, são responsáveis pela produção de ciência e tecnologia em uma país com baixo investimento em inovação. Por outro lado, vivemos um tempo em que impera o anti-intelectualismo e, não raro, o obscurantismo. Como pensar ciência e inovação, nesses tempos, sem imaginar sua dimensão política?

O campo da ciência, tecnologia e inovação tem centralidade na agenda da crise: vacinas, novos medicamentos, testagem, o tratamento que envolve a qualificação profissional. A capacidade de resposta à crise em grande medida está fundamentada na rede de pesquisa e laboratórios públicos e privados do País. O trabalho do SUS pode ser potencializado com uso da tecnologia para vigilância, diagnósticos à distância e uso de inteligência artificial no tratamento de grandes bases de dados. Temos de ter condições de produzir respostas a esses desafios. Hoje 87% do orçamento do FNDCT estão contingenciados. Isto é inaceitável no contexto atual aonde as soluções para a crise vêm justamente da CT&I. Programas decisivos que garantem a capacidade de resposta do País à pandemia atual vêm sendo sistematicamente desfinanciados e desmontados sob o argumento do ajuste fiscal. Temos de criar condições de produzir e de estar à frente de setores mais intensivos em conhecimento. Em um mundo cada vez mais globalizado, não podemos nos conformar em produzir soja e ferro e não ter ciência e tecnologia. Temos uma riqueza científica imensa, e temos de convocar e dar condições para que este conhecimento se torne riqueza para a sociedade brasileira.