Estado Social e a desigualdade social

Marcelo Medeiros

Realiza estudos no campo da Desigualdade Social. Tem formação em Sociologia e Economia. Atualmente é professor visitante na Princeton University. Foi professor na UnB, pesquisador do Ipea, do International Poverty Centre - UNDP, pesquisador-visitante na Cambridge University, no Institute for Human Development - Delhi, no Indira Ghandi Institute - Mumbai, na Sophia University - Tóquio, na UNSAM - Buenos Aires, no CNRS-Cermes3 - Paris, na University of California - Berkeley e na Yale Law School - New Haven, além de especialista em avaliação de políticas do TCU. Recebeu o Fred L. Soper Award, prêmio da Organização Mundial da Saúde para a melhor publicação em saúde pública de 2012, o Prêmio Tesouro Nacional em Economia do Setor Púlblico, 2012 (3o. lugar), o prêmio Anpocs de melhor tese de doutorado em Ciências Sociais de 2003, medalha de melhor estudo sobre desenvolvimento do Senado Federal - Instituto Tancredo Neves em 2000 e menção de Melhor Estudo de Aluno de Graduação do XX Eneco em 1993. Atuou como membro de conselhos de pesquisa na AUC - Cairo e na Fiocruz - Rio. Tem publicações nas áreas de Desigualdade e Mobilidade Social, Demografia, Saúde, Educação, Uso do Tempo, Gênero, Pobreza, Teorias do Desenvolvimento, Deficiência e Proteção Social, bem como artigos de divulgação científica, análise e opinião em jornais e revistas. Coordena projetos de pesquisa e trabalha regularmente em conjunto com orientandos de graduação, iniciação científica, mestrado e doutorado

Por Observatório do Estado Social, em 19/04/2020 [quarentena]

 

Qual a relação entre desigualdade e Estado Social?

O Estado afeta a desigualdade por dois ângulos, o do gasto e o da arrecadação. Os gastos pró-ricos contribuem para a desigualdade, assim como a arrecadação sobre os pobres. O oposto, evidentemente, diminui a desigualdade. Se gastar mais com as pessoas mais pobres, mas também arrecadar mais delas, o Estado não tem caráter igualitarista forte. Para ter, precisa ser fortemente redistributivo: arrecadar mais dos mais ricos e gastar mais com os mais pobres. Isso diz algo muito importante: não basta definir o tamanho do Estado, é preciso definir também seu perfil distributivo.

O Estado brasileiro está cumprindo esse papel?

Sim e não. Isso porque não se pode falar do Estado em termos gerais. O Estado age por uma série de políticas, cada uma com tamanho e perfil distributivo diferente. Mas uma coisa pode ser dita: com uma mão o Estado brasileiro afaga os pobres e, com a outra, acaricia os ricos. O número de benefícios e concessões aos mais ricos do Brasil é muito grande, se comparados ao gasto e arrecadação da maior parte dos países da OCDE.
Uma característica da história das políticas sociais brasileiras é a expansão por inclusão, não por redistribuição. Isso precisa ser melhor explicado. As políticas foram inicialmente desenhadas para beneficiar elites e, com o tempo, se incluiu as massas. São poucas as políticas que, desde sua concepção, foram destinadas aos mais pobres. Isso aconteceu com saúde, educação e previdência. Só a assistência, que representa uma parte mínima do gasto público, foi desenhada para ser explicitamente redistributiva.
Por trás de toda discussão sobre o papel do Estado há um conflito distributivo. Nesse conflito, não basta discutir um estado maior ou menor, é preciso avaliar onde o Estado é estado pró-rico e onde ele é pró-pobres.

Então universalizar não é uma boa ideia…

Ao contrário. Universalizar, em muitos casos, é uma boa ideia. Porque isso já é um passo na direção de igualdade. Universalizar o imposto de renda, por exemplo, fazendo com que todas as rendas, sejam elas de trabalho ou lucros, paguem o mesmo imposto, já seria um passo adiante. Universalizar regras previdenciárias, diminuindo os regimes especiais e vantagens de idades para certas categorias profissionais, também.

Para entender isso é preciso ver que se por um lado o Brasil ainda tem cerca de um quarto de sua população sob pobreza, por outro dois terços são vulneráveis, isto é, têm grandes chances de cair na pobreza ao longo de uma década. Política pública não foi feita para proteger pobres apenas, até porque operacionalmente isso é difícil demais de se fazer sem causar várias injustiças. Política pública tem que priorizar a proteção dos vulneráveis. Quando dois terços da população é vulnerável, universalizar é uma boa ideia. É claro que pode sempre haver algumas limitações para não incorrer em dupla proteção, etc., esses ajustes podem ser considerados política a política.

 Mas a proteção já não é universal? Educação e saúde já são universais…

É preciso ter sempre em mente que temos um sistema de proteção social que foi desenhado inicialmente para proteger os trabalhadores do setor formal, que não são ricos, mas também não são os mais pobres da sociedade. Saúde pública, por exemplo, era bastante limitada a trabalhadores formais até a criação do SUS. Hoje o Brasil quase não tem mecanismos de proteção trabalhista para cobrir metade da sua força de trabalho que está no setor informal ou que oscila entre formal e informal. A proteção trabalhista dos vulneráveis está falhando e isso precisa mudar. A proteção social mais geral, inclusive a dos trabalhadores, deve ser menos dependente do mercado de trabalho. Previdência, por exemplo, deveria ser mais financiada por imposto de renda, não por contribuições previdenciárias, o que por sinal reduziria o estímulo à precarização do trabalho. Um programa de renda básica de grande amplitude é melhor do que um seguro desemprego cheio de barreiras à entrada que só beneficia uma parte pequena do setor formal.

Isso seria melhor em uma crise?

A proteção social não está preparada para agir de forma contracíclica, isto é, se expandir na retração econômica. Não existem mecanismos automáticos que permitam abrir rapidamente a rede de proteção em uma recessão. Um fundo contracíclico poderia fazer isso, gasta-se na recessão e recompõe-se o fundo no crescimento. Porque o mecanismo de expandir gastos por dívida nem sempre funciona, não é automático, é lento e depende de uma imensa articulação política. Existem vários fundos destinados à proteção social, o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) é um deles, mas não só o FAT se limita a uma parcela pequena dos trabalhadores formais como há várias restrições para que as pessoas usem esses recursos. Bem melhor é um fundo com mais independência. Países mantêm fundos soberanos para fazer política monetária. O Brasil pode ter um fundo soberano para fazer política social.

 

Qual o papel do território nisso tudo?

A provisão dos serviços públicos é descentralizada. Segurança, saúde e educação dependem da ação dos estados e municípios. A arrecadação também. Impostos são coletados por estados e municípios. Portanto, não existe um Estado Unitário e sim várias dimensões territoriais do Estado.

O trabalho do Observatório do Estado Social é muito importante. É crucial monitorar a dimensão territorial do Estado, saber o que acontece em cada local. Porque é isso que permite tornar a ação pública mais igualitarista e mais eficiente.