No livro COVID-19 e a crise urbana, no primeiro capítulo, há uma discussão sobre a PEC/995/2016. Essa emenda constitucional pode ser considerada, na sua essência, um Ato Institucional (com toda sua negatividade) contra o Estado Social. Considerando a relação entre serviços públicos e a urbanização, somados às demandas urbanas represadas, que cenário podemos esperar para os próximos anos para a cidades brasileiras?
Ana Fani – O mundo é capitalista e caminha para sua realização continuada, sob a forma neoliberal – comandada pelo capital financeiro. Aqui a produção do espaço urbano ganha importância nessa realização. Já se constata que, entre os setores que perdem com a pandemia, não encontramos os bancos e certos segmentos dos setores imobiliários. Também se constata aumento da concentração de renda nas faixas superiores da sociedade.
Por outro lado, os dados da pandemia mostram o aumento da desigualdade promovida pela diminuição dos rendimentos vindos dos salários, com a flexibilidade de contratos e aumento do desemprego e extinção de cargos. Portanto, o futuro é de aprofundamento do processo de urbanização brasileiro desigual com aumento de seu caráter de violência – entendida como um processo que se realiza aprofundando a concentração da propriedade sob várias formas apontando na vida urbana de carências de todos os tipos mas, principalmente, dos meios que tornam a vida criativa (que é próprio do humano). Esta urbanização desigual repousa não só sobre a perda acentuada de direitos, mas fundamentalmente, na privação da vida urbana.
Acho significativo os dados do “Mapa da desigualdade”, feito pela Rede Nossa São Paulo, sobre a distribuição de renda no Brasil. No período de 2014 a 2019 a concentração de riqueza, medida pela variação da renda do trabalho, indica uma diminuição de 17,1% na faixa da população que contempla os 50% mais pobre; uma diminuição de 13% na classe de renda média que corresponde a 40% da população. Todavia a variação da renda do trabalho indica posição inversa na faixa de renda superior da sociedade – correspondendo a 10% da população – onde se constata um aumento de 13%.
Também é significativo a criação da PEC 995 que vem aprofundar esse movimento através da opção pelo crescimento sob a ótica neoliberal. As políticas neoliberais de agravamento à crise aparecem nos discursos e na orientação política que foca a economia em detrimento da vida de modo claro neste período de pandemia. Portanto, quando a pandemia atinge o Brasil, já encontra um país onde o sistema de saúde já vinha sendo dilapidado pelas políticas neoliberais. Ao congelar por 20 anos os gastos de saúde e educação, como resultado dos embates entre economia e política, e os compromissos com a sociedade (enquadrando o Brasil no cenário neoliberal atual) ele se faz extinguindo direitos sociais e inaugura um futuro de incerteza aonde os diretos sociais são mercantilizados.
No período de pandemia a relação leitos hospitalares e pacientes infectados escancara essa política. Portanto, a escolha neoliberal se faz e detrimento da vida. A pandemia exigiu investimentos na saúde, infraestrutura que será destruída no cenário pós-pandemia, não há previsão orçamentária para sustentar sua permanência em muitos estados.
A compreensão sobre a urbanização brasileira, que se faz explodindo as cidades em periferias cada vez mais densamente povoadas, com ausência de infraestrutura, aonde as taxas de empregos informais são as mais elevadas, onde a renda é menor e onde o número de óbitos por COVID 19 será maior. Esse é o caso de São Paulo, por exemplo.
A necessidade e urgência do auxílio emergencial é um termômetro seguro e revelador de nossa desigualdade social atuando sobre as condições medidas pelos dados do mapa da desigualdade. Mas, o que o mapa não traz – e que agrava essa situação – é o papel do narcotráfico na construção das periferias urbanas – dominando a construção do imobiliário, vendendo de proteção, monopolizando a venda de produtos de consumo como o gás etc.). O narcotráfico e as milícias que dominam a periferia, com seu forte grau de violência física direta, chegam ao domínio do corpo, da casa e da rua interferindo nos modos de acesso aos lugares da vida. Na periferia, a violência da urbanização que produziu a cidade segregada desigual se agrava com a violência brutal e direta do narcotráfico que parece ter aumentado seu domínio na periferia, – nos tempos de pandemia- expandindo-se em direção ao centro.
No caso brasileiro, portanto, a pandemia vem agravar uma crise urbana vivida em sua radicalidade. A concentração de renda que acompanha a história brasileira se vê agravada pelo modelo neoliberal de desenvolvimento, que tem rebatimento direto no modo como essa concentração hierarquiza a sociedade no espaço, produzindo a cidade segregada (social e espacialmente), o que implicará no modo diferenciado como a pandemia vai se concretizar e evoluir atingindo diferencialmente a sociedade.
O cotidiano também aponta que a vida urbana do confinamento vai fortalecendo a construção de uma identidade abstrata – marcada pela sociedade de consumo – através de um modelo manipulador que reorganiza as relações sociais direcionada pelo consumo, dos signos e do espetáculo que dão sustentação a urbanidade sob o capitalismo, fundada no desenvolvimento do individualismo pontuado pela competitividade que ilumina a ética do “cada um por si”. Portanto, esse processo, que se realiza como norma, invade o espaço privado, sem, no entanto, recriar identidades ou “pertencimentos” reais. Individualismo moderno – inserido no mercado de consumo – restabelece as esferas do privado numa prática urbana que repõe, constantemente, a vida como privação do desejo.
Deste modo o cotidiano além se ser uma repetição de atividades ao longo do dia e da semana contempla, de modo mais complexo, como são usados e representados os espaços-tempos dedicados e necessários à realização da vida bem como, o modo como esse processo se realiza diferencialmente – nem todos tem acesso a redes de computadores, celulares e a internet rápida. E muitos, sequer comida na dispensa. Trata-se da produção espacial da contradição centro-periferia que distingue e distribui desigualmente os diretos.
Na periferia habitam os sem direitos ao isolamento, trabalhadores informais, desempregados, empregados domésticos que continuam trabalhando e se movimentando numa miríade de ações entre ir e vir. Todos lutando para sobreviver diante da desigualdade de direitos. No caso da metrópole de São Paulo, os casos de mortes pelo COVID-19 localizam-se em maior número, na periferia de forma mais expressiva aonde o preço do solo urbano é mais baixo e aonde se encontram: a) o maior número das favelas existentes b) as menores médias de idade ao morrer; c) as menores taxas do emprego formal; d) as maiores médias de tempo de espera de uma consulta na rede pública; e)a maior presença de negros e pardos na composição da população habitante.
Certamente a produção da periferia, da mancha urbana explodida não é homogênea, criando áreas de renda diferenciada, manifesta na morfologia espacial profundamente desigual. É assim que na periferia da mancha urbana encontramos áreas de grandes condomínios fechado e de classe de renda alta e média, ao lado de áreas de privação quase absoluta, como lugares de sobrevivência da vida que acontece sob o signo da privação.
A espacialidade revela os conteúdos da vida cotidiana. Neste plano a imposição do poder da riqueza e da ordem planificada do espaço e do tempo atingem diferencialmente os membros da sociedade. A vida cotidiana atesta a privação do urbano pela ausência dos direitos que fundam e orientam a realização da existência onde a condição subalterna da sociedade, amplia as condições da privação.
Essa desigualdade socioespacial realiza a contradição centro-periferia produzida pela urbanização desigual assentado na industrialização poupadora de mão de obra e com altas taxas de exploração do trabalho – marcada pela concentração de renda e propriedade que vem acompanhada pela concentração de poder agravada pelas políticas neoliberais – que tem obrigado os trabalhadores a ocuparem as franjas da mancha urbana em função do processo de valorização do solo urbano. É por esse motivo que o vírus ao atingir desigualmente a sociedade – apesar dos discursos em contrário – aprofunda a crise social.
Acompanhada de uma profunda crise política o drama social se vê multiplicado, no Brasil, pela contradição entre a política federal que privilegia o “direito ao crescimento” e as estratégias sugeridas pela OMS e, seguida em parte pelos governadores e prefeitos brasileiros, do “direito à vida”. Certamente a violência contida no processo de urbanização que vem eclodindo em nossas cidades nos últimos anos – sob a forma de lutas no espaço e pelo espaço – serão redobradas com a verticalização e extensão dos problemas causados pela pandemia que agrava a desigualdade socioespacial. O futuro será, portanto, conturbado, com aumento de tensões de todos os tipos que escancaram uma vida cotidiana em sua privação, controlada e vigiada.
A crise resultante da pandemia, para além da saúde, afetará o mercado de trabalho urbano. Os últimos dados do emprego formal para o município de São Paulo, de 2018, apontaram que os setores da Construção Civil e da Industria da Transformação somaram 606.380 empregos formais. Em abril de 2020, haviam, apenas no município de São Paulo, 817.811 Microempreendedores Individuais (MEI). Esse número tem aumentado assustadoramente. Como interpretar essa mudança no mercado de trabalho urbano e na renda urbana? A mobilidade social pelo trabalho, sonho daquilo que alguns adjetivaram de “democracia fordista”, acabou ou nunca existiu?
Ana Fani – O capitalismo, para continuar se reproduzindo, precisa ampliar a base social na qual se realiza a acumulação, portanto, requer a multiplicidade de objetos de consumo de todos os tipos. Nesta lógica – indutora do lucro- o indivíduo é reduzido à força de trabalho, que em nossa sociedade vem se tornando, em parte, supérfluo pelo desenvolvimento da chamada “4ª revolução tecnológica” o que vem gerando o fim de determinados empregos (aonde a máquina substitui com vantagem, para o empregador, o ser humano, como presenciamos hoje de forma escandalosa no ensino à distância) bem como, criando uma nova configuração das relações de trabalho trazendo como consequência a diminuição dos direitos trabalhistas duramente conquistados. Refiro-me, aqui, aos contratos de trabalho flexibilizados incluindo os contratos de trabalho de “zero hora” criando as barreiras que impede o humano de se realizar. A instauração do cotidiano como exigência da acumulação vem ao longo das últimas décadas aprofundando a desigualdade numa vida normatizada e vigiada de cima por um governo autoritário.
O debate em torno do mundo do trabalho diz respeito as mudanças contempladas pelo neoliberalismo, que se faz concentrando renda e mudando as relações trabalhistas. Os contratos se flexibilizam e esse movimento se faz contra os trabalhadores que sofrem não apenas perdas salariais, mas o fim de todos os benefícios que o salário baixo não pagava e que hoje, vai privá-los de suas conquistas. Temos assim no mundo do trabalho: a) aumento do desemprego; b) aumento dos contratos de trabalho de zero hora; c) aumento do empregos informais; d) transformações no processo de trabalho envolvendo o home office – sistema esse que estava no radar dos empresários objetivando a diminuição dos custos e que a pandemia veio testar e impor-se impedindo quaisquer tipos de insubordinação à essa lógica.
Segundo dados da Pnad Covid, pesquisa criada pelo IBGE para mensurar os efeitos da pandemia no país, desde maio foram cerca de 500 mil postos de trabalho perdidos nos serviços domésticos. Em um ano, o setor doméstico perdeu 1,7 milhão de postos. As transformações no mundo do trabalho se fazem, portanto, com a degradação da atividade e desgaste maior da força de trabalho associada a invasão e destruição das relações casa-trabalho subvertendo a ordem e o conteúdo do espaço doméstico, e do lado do capital com aumento da produtividade, diminuição dos custos de produção e, consequentemente, aumento do lucro.
As mudanças no mundo do trabalho trazem consequências no mercado imobiliário a) as empresas, dependendo do tamanho, abandonam ou diminuem as áreas alugadas nos edifícios de escritórios agindo sobre preços dos imóveis e aluguéis. b) O home office por sua vez interfere no imobiliário residencial com valorização de casas e de lugares diferenciados na cidade enquanto cadeias de hotéis recriam suítes para home office e escritórios de reunião.
Enquanto a classe média se movimenta para a áreas residenciais de casas para acomodar moradia-escritório, outros não tem tantas possibilidades. O Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) em 27 de julho revela a alta inadimplência enfrentada por mais de 60% da população ativa que não consegue pagar pelos imóveis comprados fazendo crescer fez crescer o número de propriedades retomadas pelos bancos. Ao mesmo tempo aumenta o número de despejos por todo o Brasil ao mesmo tempo em que continuam a retomada de imóveis ocupados pela parcela da sociedade sem acesso ao mercado imobiliário.
Dados de maio de 2020 apontam que as famílias de baixa renda, muitas das quais trabalham na prestação de serviços diretamente ao consumidor, um setor duramente afetado pelas medidas de contenção. Segundo estimativas do Banco Mundial, sem medidas de mitigação como o Auxílio Emergencial, o número de pessoas vivendo com renda abaixo de meio salário-mínimo poderia aumentar entre 5,6 milhões e 9,2 milhões. Do ponto de vista das políticas, algumas respostas como o próprio Auxílio Emergencial e o aumento do número de beneficiários do Bolsa Família, podem amortecer esse choque, todavia essa política está sob forte ataque do governo federal.
As mudanças no mundo da educação com as aulas a distância testam a importância do lugar da educação em nossa sociedade e sinalizam a transferência das escolas privadas para escolas públicas de respeitável contingente de alunos. A crise social que aparece hoje é um produto de nossa história recente que vai aprofundando-se a partir da degradação das relações de trabalho, a flexibilização dos contratos de trabalho, a uberização do trabalho e os contratos de zero hora, acompanhado pelo aumento dos preços dos bens necessários a vida. Todavia, essa história recente tem seu fundamento na urbanização dependente que se faz induzida pelo processo de industrialização poupador de mão de obra, com taxas exploração do trabalho produzindo as periferias urbanas desurbanizadas.
O espaço urbano, no século XX, foi campo fértil para os movimentos sociais. A década de 1960, por exemplo, em vários países, deu visibilidade para um conjunto de agendas progressistas quase que sincronizadas. Mas esse espaço público também tem sido palco de manifestações antidemocráticas, o que, historicamente, também não é novidade. O espaço público ainda será, apesar das redes sociais, um campo de disputas políticas?
Ana Fani – As razões das desigualdades assentadas em diretos diferenciados ou inexistentes (ou existentes, mas que não entram na prática socioespacial) tem fundamento na história da desigualdade social postas pelo desenvolvimento do capitalismo fundamentado na propriedade privada, concentração de riqueza, poder de uma classe sobre outra. Esse se desenvolve e se expande impondo-se, acompanhado pelo discurso que naturaliza as desigualdades. E o presente é uma sociedade em que os diretos básicos de vida como habitação, alimentação educação e saúde estão sendo garantidos desigualmente e outros direitos que não existem surgem no plano do vividos como carência iluminado as condições do inumano que se forja no desenvolvimento e expansão do neocapitalismo, onde contradições antigas sob nova roupagem movem as lutas surgidas pela consciência desenvolvida das diferenças. A consciência que move as lutas mostra a urgência que acompanha a necessidade de superação desta condição de desigualdade.
Nesta escala, a segregação socioespacial ilumina a hierarquia social que se realiza como hierarquia espacial, impondo acessos diferenciados aos lugares da cidade, pela imposição da propriedade privada, que produz e estrutura a sociedade desigual que vivemos e que vai espelhar aonde a pandemia vai atacar mais fortemente. Esse movimento em direção ao futuro se faz em detrimento do humano – que apenas sobrevive – e agora, também da vida.
Dominando pelo alto o cotidiano, encontramos um governo profundamente autoritário construindo alianças com determinados setores políticos, militares e econômicos capazes de lhe dar sustentação. É assim que as ações do presidente na porta do palácio ou passeando pelas ruas – quando a OMS receita o isolamento social para conter a propagação do vírus evitando mortes – pede o fim do isolamento para movimentar a economia e empregos ao mesmo tempo em que luta contra as instituições democráticas do país. O tempo da vida invadida pela troca, fortemente planejado, burocratizado e rigidamente controlado se realiza hoje pelo discurso da liberdade de ir e vir, escancara a lógica neoliberal que deve se realizar contra o social. Uma lógica que reuni os interesses particulares e os interesses políticos, entre os que decidem em nome do privado e os que decidem em nome das instâncias superiores dos poderes. Neste plano, estabelece-se uma inversão importante: o esquecimento e manipulação da coisa pública em proveito do privado, ao mesmo tempo em que restaura as condições da acumulação.
A sociedade urbana não é destituída da barbárie que tem por conteúdo o homem despojado de sua identidade (posto que subsumido ao universo do consumo), imerso numa prática socioespacial permeada por interditos e normas, marcada por apropriações privadas, confrontado com a miséria vivida pelo corpo (com a exacerbação da vigilância), etc. São os sinais evidentes da existência das forças mutiladoras do sujeito. A vida cotidiana vigiada e normatizada ganha no espaço público a possibilidade da construção de identidades. Ela é o lugar do convívio, do debate e do confronto. Ele expressa o modo como a sociedade se pensa e age em direção ao futuro. Mas, ele revela o presente pois é aqui que se acham /encontram as brechas que sinalizam as tendências futuras. De um lado a apropriação desses espaços se faz como pontos de denúncias e de contestações sobre o modo como se desenvolve a vida em seus vários níveis. Os corpos que usam esses espaços apontam mudanças na sociedade. O espaço público tem um sentido do uso. Com isso quero dizer que se trata do lugar da cidade da visibilidade das relações sociais e do modo como se vive a vida. O plano da vida cotidiana revela de forma brutal o embate entre as políticas públicas de crescimento e a manutenção da vida. Esse embate reflete-se em ações políticas, expressas por meio de decretos, leis e outros instrumentos, dos diferentes poderes governamentais que afetam diretamente a sociedade. Se o cotidiano se realiza como separação e cisões das ações permeadas pela passividade, imposta pela lógica capitalista, este contempla o seu “outro” gestado numa nova inventividade pela improvisação.
É necessário destacar que, a desigualdade tem sido naturalizada, o que impediu sua compreensão. É assim que, à palavra desigualdade se soma outra: que é a existência populações vulneráveis. A desigualdade é um conceito que expressa a existência de uma sociedade de classes, que transforma os indivíduos iguais, em indivíduos desiguais. Portanto, a desigualdade é uma condição social, não é natural. Assim este período de pandemia, que leva ao isolamento social, é atravessado por um conjunto de ações que vai permitindo o diálogo. Em sua relação dialética o isolamento social traz aquilo que o contesta: a reunião com atividades lúdicas – via redes sociais e vizinhança – mas, também iluminando as insurgências que vem da casa trocando o limiar da porta, que delimita o dentro e fora, pela janela. Sua existência permite a reunião senão dos corpos, das vozes que se elevam e participam da vida nacional. O espaço público revela o sentido da cidade pela reunião dos indivíduos ativos em sua luta. O isolamento social não foi totalmente capaz de impedir as manifestações. Elas revitalizam o espaço público. As redes sociais são instrumentos de reunião para a ação. Estas são reais e concretas, e ganham sentido no espaço público. Assim é impossível fazer calar as vozes que agem, através do corpo insurgente, usando os espaços públicos, se posicionado publicamente diante das graves questões políticas vividas. Portanto, o cenário é de acirramento das lutas nos espaços públicos.
Muitos analistas, de distintas matrizes políticas e ideológicas, tem dito que o mundo não será o mesmo após a COVID-19. Para além do truísmo que a afirmação revela, não estaríamos, ao admitir que o vírus seja portador de uma mudança, nos iludindo, construindo um tipo de idealização que, apenas, teria como objetivo, semear o conformismo momentâneo? Há indícios de que o mundo pós COVID-19 será um mundo melhor? Há indícios de que nossas cidades serão diferentes?
Ana Fani – Muitos pesquisadores colocam hoje no centro do debate sobre a pandemia o cenário do futuro. Talvez porque seja difícil pensar o presente “definido” por taxas e mais taxas de óbitos, infectados. Não que esses números sejam desprezíveis, ao contrário. Mas, essa abordagem tem deixado de lado a compreensão sobre a sociedade atingida pelo vírus. Que sociedade é essa? Porque a pandemia atinge desigualmente nossa sociedade. Porque ela é mais grave na periferia do que no centro.
Essa fuga impede de compreender o que se esconde por traz das lutas na cidade. Os conflitos que têm aparecido nas áreas urbanas são reveladores das situações desiguais de nossa sociedade. As lutas entrono da habitação inequivocamente apontam a hierarquia socioespacial que se revela pela segregação aonde domina propriedade privada da riqueza social. Pensar no futuro sem compreender o que significado desse momento numa sociedade dependente e desigual cria um “imenso campo cego” isto é, encobrem o fundamento da desigualdade de nosso sociedade afrontada pela pandemia.
O que me parece central neste momento é não esquecer que a sociedade que desponta no horizonte pós pandemia continuará capitalista e que a lógica do capital – processo de valorização do valor – seguirá seu curso superando através de políticas públicas neoliberais seu curso. As políticas públicas tanto no âmbito nacional, como no caso de São Paulo, não deixam dúvidas.
O rumo das ações no governo, em tempos de pandemia, sinaliza uma clara preocupação com o crescimento da economia e com as eleições que se aproximam tanto no plano federal, como no estadual em detrimento da vida. Sinalizo aqui duas ações estratégicas que fundamentam essa afirmação. Em 26 de outubro de 2020 um decreto da Presidência da República (105.30) dispôs de ações visando privatizar as UBS – unidades públicas de saúde – dos estados e distrito federal e com isso dando um passo importante à privatização do Sistema Único de Saúde – SUS – no Brasil que, hoje, está a cargo do setor público e que permite o atendimento de toda a sociedade, situação esta que ficará comprometida com a sua privatização[1]. No âmbito das ações do governo do estado de São Paulo em relação a pandemia mesmo que em alguns momentos tendem a se aproximar das determinações da OMS (numa direção contraria ao do governo federal), suas ações não deixam de apontar o forte compromisso neoliberal que marca as ações do governador. É assim que em tempos de pandemia a construção das políticas de sustentação neoliberal centraliza-se na diminuição dos gastos públicos que beneficiam o plano social. As políticas públicas direcionando os orçamentos distribuem desigualmente os recursos esvaziando a vida urbana que se faz com o aumento da privação do urbano e perda de direitos. No governo do Estado de São Paulo, do mesmo modo que aconteceu no primeiro ano do mandato do então governador na gestão da cidade de São Paulo a lógica liberal fundamenta as ações políticas e estrutura os projetos de governo.
Enquanto a Organização Internacional do Trabalho (OIT) alertava em 30 de setembro[2] sobre a necessidade de adotar estratégias imediatas para enfrentar a crise laboral provocada pela COVID-19, que já havia causado a perda 34 milhões de empregos na América Latina e no Caribe o governador de São Paulo manda publicar no Diário Oficial, em 20 de outubro, um projeto de lei nº529 “ que estabelece medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilíbrio das contas públicas e dá providências correlatas”.[3] O projeto do Governo do Estado de São Paulo estabelecia como um de seus objetivos estratégicos implantar uma “Gestão Pública Moderna e Eficiente” através de um conjunto de metas das quais se destaca a de “extinção de 1000 unidades administrativas, com um programa de Demissão Incentivada os cortes poderiam atingir 5.600 funcionários públicos.
Nossas cidades serão diferentes? Penso que os conflitos reavivam a cidade. Estes certamente continuarão ocupando os espaços públicos. Dessa ação dependerá o resgate da democracia como condição básica da inversão do modelo de governo que privilegia o crescimento em detrimento da vida. Resolver os problemas que estão postos no presente exige trabalhar com a escala do espaço – produto social- e do tempo – da história. O tempo da urgência é aquele do presente. E o presente é uma sociedade em que os diretos básicos de vida como habitação, alimentação educação e saúde estão sendo garantidos desigualmente e outros direitos que não existem surgem no plano do vividos como carência iluminado as condições do inumano. O presente é, também, aquele das políticas mitigadoras das condições de extrema pobreza e desigualdade no combate ao vírus que pouco deixam entrever o futuro senão a do aprofundamento da crise urbana. A cidade é também o lugar onde brota a utopia, para pensar o futuro além da urgência do tempo presente. A consciência que move as lutas mostra a urgência que acompanha a necessidade de superação desta condição de desigualdade. O projeto utópico requer o salto em direção ao futuro.