Estado Social e Desenvolvimento Humano

Thomaz Ferreira Jensen

É economista, graduado pela Faculdade de Economia da USP. Desde julho de 2007 trabalha como assessor técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Também assessora encontros organizados por comunidades e movimentos populares sobre conjuntura, formação social e econômica do Brasil e reflexão sobre práticas do trabalho de base. É membro do conselho consultivo da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Associação Brasileira de Reforma Agrária.

Por Observatório do Estado Social Brasileiro

 

 

OBS – O Relatório de Desenvolvimento Humano de 2019 apresentou o Brasil como um país com desigualdade social extremamente elevada, sendo comparado à África Subsaariana e ao Oriente Médio (PNUD, 2019). No Brasil, os indicadores de desenvolvimento humano podem ser relacionados diretamente ao conjunto de ações políticas do Estado Social, tendo em vista que, elementos como “esperança de vida ao nascer” e “expectativa de escolaridade” em grande medida refletem a atuação do Sistema Único de Saúde e da Rede Pública de Educação. Qual impacto que a PEC 32/2020 pode provocar diante desse cenário de extrema desigualdade?
O Brasil da extrema desigualdade social em que vivemos, de brutal concentração de renda e riqueza, é resultado da permanência do subdesenvolvimento e da dependência, legados do nosso passado colonial que nos desafiam e exigem superação. A pandemia aprofundou a crise e a recessão econômica que já estavam presentes no País desde muito antes da Covid-19 e está acentuando o abismo da desigualdade social. Dados do IBGE apontam que os 10% mais ricos se apropriam sozinhos de 43% de toda renda do País, alcançando o maior patamar histórico de concentração desde que a pesquisa é realizada.
Por que no Brasil a pandemia se transforma numa tragédia humanitária? Os impactos desiguais da pandemia na população brasileira devem-se à desigualdade social que nos caracteriza estruturalmente. É importante registrar que, em 2019, o rendimento médio mensal real do trabalho do 1% da população com os rendimentos mais elevados, era de R$ 28.659 – 33,7 vezes o rendimento dos 50% da população com os menores rendimentos, de R$ 850. O rendimento médio real dos ocupados no Brasil, em 2019, foi de R$ 2.244, praticamente inalterado em relação a 2018. Se no Sudeste esse valor médio chega a R$ 2.645, no Nordeste era de R$ 1.510, evidenciando a dimensão regional da desigualdade social. Quando os dados são analisados pelo critério de cor da pele, evidencia-se a desigualdade que remete à herança escravocrata. O rendimento médio mensal real de todos os trabalhos das pessoas brancas foi de R$ 2.999 em 2019. As pessoas pardas receberam em média R$ 1.719, enquanto as pretas somente R$ 1.673. Também perduram as diferenças de gênero: o rendimento de todos os trabalhos dos homens (R$ 2.555) é 28,7% mais alto que o das mulheres (R$ 1.985). Essas informações fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE.
E o que dizer dos impactos de um vírus que se propaga aceleradamente diante de um quadro de carência de saneamento básico? A quantidade de domicílios ligados à rede geral de esgotamento sanitário ou com fossa ligada à rede atingiu 68,3% em 2019, Ou seja, quase um terço dos lares brasileiros não tinha saneamento adequado. Na região Norte, apenas 27,4% dos domicílios estão com esgoto satisfatório. No Nordeste, menos da metade da população tem acesso à rede de esgoto: 47,2%. Está claro que uma crise dessa gravidade se transforma a cada dia numa tragédia por conta da anomia e da desconexão causada pelo presidente da república, que atua para a ruptura com governadores, prefeitos, Poder Judiciário e Congresso Nacional.
O papel do Estado na superação dessa estrutura econômica que perpetua a pobreza e a miséria é crucial. A PEC 32/2020 em nenhum aspecto busca uma reforma administrativa que intensifique esse papel crucial do Estado na garantia de direitos sociais. A reforma administrativa proposta pela PEC 32 é condicionada pela ideologia do Estado mínimo e pelas políticas de austeridade centradas nos cortes de despesa que dificultam a retomada dos investimentos e do crescimento, desprotegem quem mais precisa dos serviços públicos de saúde, educação, assistência etc., e desorganizam – ao invés de aperfeiçoar – a administração governamental.
Talvez a mais importante alteração que consta da PEC 32 é o que se pode chamar de relativização da estabilidade. A estabilidade é regra constitucional e é a maior garantia para a sociedade de que o servidor poderá desempenhar seu trabalho de forma impessoal, sem se preocupar com qualquer tipo de represália, tendo o mínimo de influências de ordem político-partidária e sem comprometer a missão final de bem atender ao cidadão. O que estamos assistindo, estarrecidos, ao longo desse governo Bolsonaro, com interferências autoritárias em diversos órgãos públicos (da Polícia Federal à ANVISA), explica e explicita o perigo de relativizar a estabilidade dos servidores.

 

OBS – No Brasil, de acordo com a Pesquisa de Orçamento Familiar (2017 – 2018) 10,3 milhões de pessoas viviam em estado de insegurança alimentar grave, sendo que 84,9 milhões apresentaram algum nível de insegurança alimentar (IBGE, 2020). De acordo com o DIEESE, em agosto de 2020, ocorreu nas capitais selecionadas uma elevação média de 15,37% do custo da cesta básica, fato que impacta significativamente no orçamento familiar. Por exemplo, em São Paulo a cesta básica equivalia a 55,85% de um salário mínimo. Observando essa estrutura, quais as possibilidades de atuação do Estado frente à relação entre a insegurança alimentar e índices inflacionários?
Entre agosto e setembro de 2020, o custo da cesta básica aumentou nas 17 capitais pesquisadas pelo DIEESE. Os baixos estoques de soja e derivados, devido às elevadas demandas, interna e externa, provocaram aumento no valor do óleo de soja em todas as capitais. O preço do arroz também subiu nas 17 cidades, conseqüência do elevado volume de exportação e da baixa disponibilidade interna. A alta do açúcar, em 15 capitais, foi ocasionada pelo aumento no ritmo das exportações e na demanda de cana para produção de etanol. Os exemplos aqui citados mostram que, sem a atuação do Estado, por exemplo, através da manutenção de estoques reguladores ou, sobretudo, pela reorientação da produção para o mercado interno em detrimento de exportações (como tantos países fizeram diante da pandemia), o “mercado”, visando o lucro, não irá assegurar a segurança alimentar do povo.

Em São Paulo, capital em que foi registrado o maior valor, a cesta básica custava em outubro R$ 595. No ano de 2020, o preço do conjunto de alimentos subiu 17,64% e, em 12 meses, 25,82%. A inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) subiu 0,86%, em outubro, o maior resultado para um mês de outubro desde 2002. No ano, o indicador acumula alta de 2,22% e, em 12 meses, de 3,92%, acima dos 3,14% observados nos 12 meses imediatamente anteriores. A inflação no Brasil segue acelerando e afetando, sobretudo, os mais pobres, dado que as elevações de preços estão concentradas em alimentos e artigos de primeira necessidade.

 

OBS – A pandemia da Covid -19 exacerba um cenário de crise político-econômica que já vinha se arrastando desde as eleições de 2014 e chega no Brasil em um momento de desmonte das Políticas de Proteção Social, via reformas trabalhistas, reforma da previdência e teto de gastos. Qual sua avaliação sobre atuação do Estado no sentido de mitigar as consequências da Pandemia, principalmente sobre à população de mais baixa renda? No seu entendimento outros caminhos seriam possíveis?
O governo Bolsonaro demonstrou, diante da pandemia, toda sua incompetência, inépcia e irresponsabilidade, aspectos decorrentes do seu caráter anti-popular, anti-democrático e anti-nacional. A atuação emergencial que resultou na aprovação pelo Congresso Nacional do auxílio de R$ 600 é iniciativa da sociedade civil organizada, com destaque para o Movimento Sindical, que propôs essa ação e pressionou os parlamentares para que a aprovassem. Ao longo dos meses de isolamento social, nos bairros urbanos e no campo, foi decisiva a ação dos movimentos sociais, sindicais de juventude e das igrejas, para criar redes locais de arrecadação e distribuição de alimentos e produtos de higiene.
O povo uma vez mais conseguiu sobreviver por meio de suas próprias energias e capacidade solidária de apoio. O Estado, sobretudo os governos municipais, veio depois, quando vieram, e por pressão do povo. A luta atual é pela manutenção do auxílio emergencial no valor de R$ 600, dado que o governo Bolsonaro cortou pela metade o valor do auxílio, pela extensão no número de parcelas do seguro-desemprego, enfim, ações emergenciais diante de uma situação excepcional de aumento da pobreza, da insegurança alimentar e do desemprego.
O isolamento social, diante da pandemia, é um direito social. E, para que todos tenham acesso a esse direito, os trabalhadores devem ter plena garantia de emprego e renda. Uma política de renda mínima para todos os trabalhadores é, neste momento, uma política sanitária fundamental e uma política econômica estratégica. A duração e extensão da renda mínima terão que ser compatíveis com o tempo necessário para a superação da pandemia, o que já coloca o desafio de garantir a vigência do auxílio emergencial até o fim de 2020 pelo menos. A síntese dessa ação emergencial pode ser os dizeres de um cartaz que trabalhadores italianos em quarentena estenderam numa sacada no mês passado: “Trabalhar menos. Trabalharem todos. Produzir o necessário. Redistribuir tudo.” Direitos já!

 

OBS – Segundo dados disponíveis no Observatório do Estado Social Brasileiro, em 2009 havia, 44.188 Microempreendedores Individuas no Brasil, total que passou, em 10.321.855, em 2020. Como interpretar, a partir dessa realidade do trabalho precário, nosso modelo de representação política? Os partidos políticos progressistas, grosso modo, estão preparados para enfrentar essa “nova” realidade do trabalho e da representação política?
A intensificação da situação de precariedade na inserção do trabalho decorre das medidas implantadas pelas reformas trabalhistas desde 2017. No mercado de trabalho, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE, identificou que a queda de 12,8% no nível das ocupações registrada no trimestre terminado em agosto, frente ao trimestre móvel anterior, além de ser disseminada em praticamente todas as atividades econômicas, veio associada com a elevação da desocupação.
Segundo os dados da PNAD/ IBGE, são 13,8 milhões de pessoas desempregadas, o pior resultado da série histórica. A população desalentada atingiu 5,9 milhões de trabalhadores, crescimento recorde em relação ao mesmo trimestre de 2019 (mais 1,1 milhão de pessoas). O número de empregados com carteira de trabalho assinada no setor privado (exceto trabalhadores domésticos), estimado em 29,1 milhões, foi o menor da série, caindo 6,5% (menos 2 milhões de pessoas) frente ao trimestre anterior. O número de trabalhadores por conta própria, em que também se incluem os Micro-empreendedores individuais, chegou a 21,5 milhões de pessoas. A taxa de informalidade chegou a 38% da população ocupada (ou 31 milhões de trabalhadores informais).
A carteira verde-amarela é um ensaio para o que se quer generalizar nas relações de trabalho no Brasil, caso a orientação ultra-liberal de Bolsonaro, Guedes e dos militares que ocupam o governo federal persistir. A proposta de instituir possibilidades de contratação ainda mais precarizadas, através da chamada “Carteira Verde-amarela”, não prosperou no Congresso por força da mobilização sindical e do descalabro da relação entre o Executivo Federal e o Parlamento Nacional.
Não surpreende que ditadura, em seu projeto de massificação, visasse destruir, à força bruta, a cultura brasileira e as expressões progressistas de representação política. Infelizmente, é necessário constatar, em tudo, a ditadura foi historicamente vitoriosa. Sem ter sido propriamente derrubada, moldou o país dali em diante e dissolveu a si própria no momento em que suas formas políticas não eram mais necessárias. Quando passou, a sociedade estava transfigurada em suas bases e já não se colocava a hipótese de que se recuperasse qualquer elo perdido da cultura brasileira. A ditadura destruíra o país.
Por certo, as promessas da “redemocratização” e, posteriormente, do “neoliberalismo”, sob as formas devastadoras do capitalismo contemporâneo que levaram a massificação ao paroxismo, tampouco se cumpriram. O regime do capital vive uma crise estrutural que, no Brasil, toma a forma de um processo regressivo. Hoje a sociedade brasileira agoniza nessa espécie de fascismo neocolonial, que trouxe de volta, à luz do dia, os porões e tudo quanto há de mais abjeto. A barbárie se descortina a olhos vistos.
Uma ação necessária para os progressistas em geral é aderir à campanha para tributar os super-ricos no Brasil. Iniciativa de importantes entidades da sociedade civil (Instituto Justiça Fiscal, a Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro, a Fundação Friedrich Ebert Stiftung, Auditores Fiscais pela Democracia), essa campanha visa implementar um conjunto de medidas para enfrentar a crise econômica, agravada pela pandemia do coronavírus, com o aumento dos tributos sobre as altas rendas, grandes patrimônios e redução para as baixas rendas e pequenas empresas. São oito propostas de leis tributárias que propiciam arrecadação anual estimada de R$ 292 bilhões, onerando apenas os 0,3% mais ricos do país.
Segundo a Revista Forbes, o Brasil é o sétimo país do mundo com maior número de bilionários. São 42 pessoas no país com fortunas superiores a 1 bilhão de dólares. Os 42 bilionários brasileiros aumentaram a sua riqueza em mais de R$ 170 bilhões na pandemia, enquanto cresceu o desemprego e quebraram os pequenos negócios. Este valor é maior do que todo o orçamento da saúde pública previsto para 2020. A fortuna acumulada em poucos meses por apenas 42 pessoas daria para bancar o programa Renda Brasil que o governo quer implantar a partir de janeiro de 2021, pagando R$ 300 por mês por dois anos para 23 milhões de pessoas. A riqueza total estimada destas 42 pessoas é de aproximadamente R$ 600 bilhões. Com um imposto de 2% sobre essa fortuna daria para arrecadar R$ 12 bilhões por ano, valor suficiente para garantir tratamento de Unidades de Tratamento Intensivo para 267 mil pacientes infectados pela Covid-19. Além desses poucos bilionários, o Brasil tem muitos milionários. As declarações de Imposto de Renda de 2018 mostram que 1,1 milhão de contribuintes possuem renda média de R$ 135 mil por mês e patrimônio médio declarado de R$ 7 milhões.