A reflexão sobre o Estado Nacional, menos que aquela sobre o Estado Social, já ocupou lugar central no debate geográfico. Essa agenda, no entanto, foi erodida após a década de 1980. Considerando a conjuntura política e econômica, sob o imperativo da necessidade, seria oportuno que a geografia retomasse essa agenda de pesquisa sobre o Estado Nacional e o Estado Social?
Creio que esse debate não foi propriamente “erodido” após os anos 1980. Em primeiro lugar, se observarmos a Geografia europeia, o Estado nação nunca deixou de ser objeto de uma investigação relativamente rica, como demonstram, por exemplo, trabalhos recentes ou dos anos 1980-1990 de Yves Lacoste, John Agnew e Neil Brenner. No caso brasileiro, cabe considerar que as discussões sobre o Estado Nacional se encontram mais ou menos concentradas em meio ao que denominamos, de modo genérico, Geografia do Brasil. Autores como Milton Santos, Antônio Carlos Robert de Moraes, Wanderley Messias da Costa, José William Vesentini e Ruy Moreira realizaram nas últimas décadas importantes pesquisas e/ou ensaios sobre a formação nacional-estatal brasileira. No caso de Milton Santos, é interessante observar seus artigos de jornal (durante o tempo em que foi colunista da Folha de São Paulo), onde defendia claramente a construção de um projeto nacional para o Brasil. É verdade que alguns geógrafos, especialmente aqueles de filiação libertária e/ou anarquista, não acreditam em um “projeto nacional” (onde se coloque, por exemplo, o chamado Estado Social). Outros, talvez por não ousarem construir um diagnóstico empírico da situação em escala nacional, não conseguem discutir o “social” para o conjunto do Estado brasileiro. Na verdade temos poucas obras de síntese sobre a própria Geografia do Brasil em um prisma geopolítico (a exemplo do livro “Brasil: uma nova potência regional na economia mundo”, que Bertha Becker e Claudio Egler escreveram em 1994) e menos ainda em termos da assim chamada Geografia Social – pouco presente entre nós em um sentido mais amplo e com essa designação.
Defendamos ou não a existência e/ou a presença do Estado, ele continua sendo uma entidade evidente e universal, e seu papel sem dúvida se revigorou com a pandemia de Covid-19. Para quem ainda tinha alguma dúvida, esta crise demonstra a força e/ou a necessidade das políticas sociais, públicas, a ponto de muitos neoliberais mudarem seus discursos e advogarem um Estado Social capaz de proporcionar, no mínimo, uma política de saúde consistente. Sem dúvida abre-se para a Geografia um enorme universo de pesquisa referente ao papel social do Estado em suas múltiplas escalas – no caso brasileiro, do municipal ao estadual, regional e nacional. Embora o “regional”, neste sentido macro, entre o estadual e o nacional, nunca tenha tido muita consistência política entre nós, a própria pandemia, com um claro perfil de desigualdade regional, demanda um tratamento também nesse nível.
Vivemos, durante algum tempo, sob o signo da positividade globalista. Um falso otimismo. Esse discurso, no entanto, não resistiu ao processo de fragmentação e consecutivo fechamento das fronteiras, cujo exemplo mais didático tem sido o Brexit. Que Estado Nacional está emergindo na América, na Europa e também no Brasil?
Como não sou um especialista em Geopolítica global e essa questão demandaria também um conhecimento aprofundado de nossa história recente, a fim de delinear “que Estado está emergindo” nesses diferentes contextos, vou apenas esboçar um comentário. Creio que é inegável que o mundo tem manifestado nas últimas décadas, em meio à grande diversidade de situações em termos de formações estatais, um fortalecimento do autoritarismo, sob o exemplo emblemático da maior potência emergente, a China. Ao contrário da China, entretanto, onde o Estado interfere em praticamente todas as esferas da sociedade, a maioria dos Estados tem buscado refortalecer fundamentalmente seu aparato repressivo e de controle social, o que já havia sido antecipado por Foucault e Deleuze ao reconhecerem a emergência das sociedades de controle ou de segurança. Sob o neoliberalismo, o Estado adquire um papel chave não na diminuição das desigualdades e nas políticas de saúde e educação, mas no poder repressivo. Contraditoriamente, isso se dá justamente quanto ele perde muito em termos de sua prerrogativa histórica de promover o “monopólio da violência legítima”. O surgimento de inúmeros grupos paramilitares ou milicianos pelo mundo, que no Brasil atual se reflete no próprio apoio governamental ao armamentismo generalizado, é bem sintomático desse paradoxo. Diante de um “capitalismo de catástrofe”, no termo cunhado por Naomi Klein, o Estado acaba sendo responsável pela “segurança” num sentido ampliado, com os militares sendo acionados também para outras tarefas que não as estritamente (mas, indiretamente, também) repressivas. Talvez esta pandemia esteja antevendo a proliferação desses “Estados de segurança ampliada”, que exigirá uma reconfiguração para atender a situações emergenciais cada vez mais recorrentes, criadas, no fundo, pelo próprio sistema que agora deve combatê-las. Com a China se destacando como a grande ganhadora (ou a “menor perdedora”) no mundo pós-pandemia, certamente alguns elementos de seu modelo serão projetados mundo afora, em especial os mecanismos de telemonitoramento e controle da mobilidade. De qualquer forma, no âmbito das questões ecológicas, sem dúvida deverá ocorrer um reforço, ainda que lento e tardio, do papel do Estado, no mínimo estimulando ou em parceria com empresas dispostas a lucrar mais com o “discurso verde”. Não é demais lembrar que mesmo aí o Brasil, hoje, na esteira de governos direitistas como os Estados Unidos, caminha na direção oposta. Cabe a nós lutarmos de todas as formas para reverter ou, pelo menos, minorar os efeitos perversos dessas políticas.
A desterritorialização é um dos conceitos mais férteis das ciências humanas. Como, sob a ótica da desterritorialização, compreender a crise pandêmica, especialmente, em cidades como o Rio de Janeiro?
A atual pandemia demonstrou, entre outros fatos, a enorme relevância da dimensão geográfica da sociedade, em suas múltiplas dimensões. Todo o discurso de um mundo global desterritorializado (que refutei no livro “O mito da desterritorialização”, de 2004) foi definitivamente questionado, sob o retorno de medidas ultra-restritivas de mobilidade. Mas se, como defendemos, a territorialização envolve antes de mais nada o controle do espaço (para Robert Sack, mais estritamente, o controle da acessibilidade), podemos nos desterritorializar – ou seja, perder parte ou a totalidade desse controle – não apenas pela mobilidade, pelo abandono de um território, mas também pela precarização das condições de vida naquilo que denomino “desterritorialização in situ”, no próprio local que habitamos. Assim, a pandemia escancarou o grau de desterritorialização, no sentido de precarização territorial, a que estão submetidos os moradores de nossas favelas e periferias pobres. Enquanto o surto foi aos poucos sendo contido nas áreas mais ricas, onde teve início (trazido pelos viajantes globais), ele se expandiu rapidamente nos bairros e mesmo regiões (Norte-Nordeste) mais pobres.
Contenção e confinamento são, atualmente, mais do que metáforas espaciais. São, por assim dizer, políticas com lastro histórico e espacial. Como os pobres, do ponto de vista das estratégias cotidianas, podem aderir ao isolamento social?
Primeiramente, uma questão conceitual: depois de “distanciamento social”, um dos termos mais utilizados durante esta pandemia é “contenção”, pois precisamos de diversas formas conter a difusão espacial ou pelo menos a velocidade de difusão da pandemia. Mas é importante lembrar nossa proposta de contenção territorial como uma concepção geográfica dotada de certo rigor. Propusemos o termo para designar os processos de controle da mobilidade dos grupos subalternos por (bio)políticas ou iniciativas concretas vindas principalmente “a partir do alto”, dos grupos hegemônicos. Trata-se, em última instância, da defesa de um espaço minimamente ordenado, no âmbito do que Giorgio Agamben denominou “regulação (biopolítica) da desordem”, na impossibilidade de se “criar uma ordem” (como se acreditava nas sociedades disciplinares, hoje em crise). Projetos de contenção territorial, dos quais o mais ostensivo foi o dos muros fronteiriços internacionais, tem sempre um “efeito barragem” (e não de total confinamento) e são sempre dirigidos a populações mais pobres tidas, neste caso, como “perigosas”, seja pela violência com que são estigmatizadas, seja pela própria pobreza que deve ser rechaçada – como se para alguns grupos privilegiados, metaforicamente, a pobreza pudesse “contaminar” seus espaços. Daí a série de iniciativas de contenção territorial voltadas para a população em situação de rua.
Devemos nos perguntar, portanto, para quem se dirige a contenção. No caso da pandemia, paradoxalmente, todos são potencialmente “perigosos”, pois podem portar o vírus. Mas isso não significa, em hipótese alguma, que a concepção de contenção territorial tenha ampliado de tal forma seu sentido que abarque todo o conjunto da população. Pode-se continuar utilizando-a para compreender como a diferença de classe (e também étnica) implica formas distintas de controle territorial para o controle da pandemia. Enquanto os mais privilegiados podem fazer seu isolamento em segurança, espaços dignos e acesso fácil à mobilidade virtual, os mais pobres não têm como ficar confinados. Em primeiro lugar, por suas condições habitacionais e sanitárias muito precárias, sem capacidade de manter um confinamento minimamente digno. Em segundo lugar, porque seu principal meio de subsistência se dá no trabalho informal pelas ruas da cidade ou com empregos domésticos e de cuidado nas residências das classes média e alta. Isso traz outro paradoxo, o de que enquanto muitos devem ser “contidos” na precariedade de suas moradias e bairros (o que é promovido, em muitos casos, até pelo narcotráfico), outros tantos devem ter assegurada sua mobilidade urbana (também precária) a fim de garantirem serviços básicos como os de transporte e entrega de produtos que são destinados prioritariamente aos grupos hegemônicos.
Quanto à noção de confinamento, devemos ter cuidado para não confundi-la com a reclusão excludente destacada por Foucault a partir do padrão da lepra, de isolamento total e definitivo em relação ao restante da sociedade. Hoje, sob a pandemia, o que denominamos confinamento é muito mais uma contenção temporária, extremamente variável, como vimos, de acordo com o grupo social. A pandemia, em síntese, veio exacerbar o dilema da desigualdade geográfica e do tratamento desigual das diferentes classes e grupos sociais.