Podemos afirmar que momentos de crise, na história da humanidade, invariavelmente, envolvem diretamente ou afetam a saúde mental das pessoas?
Sim. Afetam a saúde mental das pessoas. A afirmação é verdadeira. Não existe saúde mental separada da saúde das pessoas. A “mente” ou o que chamamos de mente, não é algo que existe separadamente do corpo. Toda perturbação mental é, na verdade, uma perturbação neuropsíquica e social. Todo estado emocional “perturbado” (ou não) vem acompanhado (é determinante ou é determinado) de um arranjo neuroquímico e (ou) hormonal. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. É um Direito social, “inerente à condição de cidadania, que deve ser assegurado sem distinção de raça, de religião, ideologia política ou condição socioeconômica, a saúde é assim apresentada como um valor coletivo, um bem de todos.” Em uma publicação de 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) reforça esse conceito, apontando quatro condições mínimas para que um Estado assegure o direito à saúde ao seu povo: disponibilidade financeira, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade do serviço de saúde pública do país”.
A Crise de 1929 é ilustrativa desse argumento?
Os exemplos mais significativos (acredito) foram anotados, inclusive por médicos de várias especialidades, psicanalista e psicoterapeutas, durante a guerra. São muitos os registros de atendimentos que foram feitos no momento em que a cidade de Londres estava sendo bombardeada. Muitos quadros (clínicos) foram registrados e comunicados como, por exemplo:
a – Famílias que foram atingidas e deixaram crianças em desamparo;
b – Famílias que perderam os filhos;
c – Gestantes diretamente atingidas (e que tiveram partos prematuros)
d – Gestantes que passaram pela experiência do abortamento.
e – Idosos que ficaram abandonados, feridos ou mentalmente muito piorados.
f – Pessoas “predispostas” e que tiveram “doença mental” desencadeada.
g – Pessoas que não tiveram “doença mental” desencadeada, mas tiveram sofrimentos desencadeados como estados de ansiedade generalizada, transtornos de ansiedade pós-traumática etc.
Em cidades americanas como Nova York, atualmente, a população sem abrigo já é maior que aquela registrada na Crise de 1929. Uma diferença, no entanto, salta os olhos. A estrutura demográfica é muito distinta, agora com um percentual significativo de idosos e pessoas com distúrbios mentais. Essa evidência histórica sugere que os efeitos da crise não são socializados e que, principalmente, afetam de maneira mais trágica as populações mais vulneráveis, como os idosos?
O fenômeno é complexo e um único fator não explicará esse acontecimento. Penso que alguns elementos deveriam ser acrescentados. Exemplo:
– O consumo possivelmente aumentado do uso de bebida alcoólica.
– O consumo de drogas (ilícitas) sintéticas e naturais.
– Aumento de imigrantes e mesmo migrantes.
– Aumento da população e as naturais disputas pelo mercado de trabalho.
– Racismo (s).
A complexidade da situação, na prática, resulta em aumento da ansiedade e esse aumento da ansiedade desencadeia o surgimento de perturbações mentais subjacentes e que, eventualmente, nunca seriam percebidas se o contexto social-familiar fosse mais estável.
O Sistema Único de Saúde é considerado uma das maiores conquistas da Constituinte de 1988. A universalização, a equidade e a integralidade são princípios norteadores das políticas do SUS. Como, na evolução do SUS, esses princípios foram aplicados às políticas de saúde mental? Existe, historicamente, uma paridade de atenção em relações às políticas para saúde mental pública para outras áreas da saúde pública?
Com a universalização TODOS podiam ser atendidos (em ambulatório) e hospitalizados (em hospitais credenciados, isto é, autorizados). Um recurso extremamente importante, mas que sempre foi vítima da corrupção, da seguinte forma. Os Hospitais Psiquiátricos foram chamados, mais recentemente, de Clínicas de Repouso. Não eram! Eram Hospitais e como Hospitais Psiquiátricos nunca poderiam ter a estrutura e funcionamento de Hospitais Gerais. Em parte, porque a população acreditava (e acredita) que “aquilo” é coisa de loucos e todos estavam dispostos a declarar com toda clareza: “Eu não sou louco!” e poderiam muito bem acrescentar: “loucos são os outros!” Como convencer uma pessoa a aceitar uma internação ao lado de “esquizofrênicos”, “psicóticos” de toda ordem? Então, quando o hospital passou a ser Casa de Repouso o problema mudou, inverteu, na verdade. Todos queriam passar um tempo em uma Casa de Repouso. Ouvi muitas vezes pacientes (não psicóticos) “exigindo” um tempo para repousar: “Eu tenho o direito de repousar. Eu pago o ÍMPIS”. Esta atitude era reforçada pelos hospitais que convidavam os pacientes para “um período de repouso”. O que isso resultou? Um número muito grande de pacientes internados e que poderiam perfeitamente receber atendimento ambulatorial. Esta situação equivocada contribuiu para uma onda de manifestações do tipo antimanicomial.
Aqui em Goiânia, seguindo esta trajetória, foi fechado o Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho e centenas de pacientes, muitos depositados lá por décadas, foram para as ruas. Eram dementes, doentes crônicos, miseráveis, sem família, muitos trazidos de diferentes municípios do estado e que se tornaram moradores de rua. Alguns foram transferidos para os hospitais psiquiátricos particulares e são vários os hospitais credenciados que, além da doença mental dos pacientes, precisam também tratar da doença social desses indivíduos. Onde está a família? A família some, muda de endereço porque não está sempre disposta a tolerar um doente mental crônico em casa. É preciso lembrar que doença mental não tem cura, embora tenha tratamento que, seja como for, é capaz e manter o indivíduo fora do hospital e razoavelmente inserido. Talvez para uma compreensão mais abrangente dessa situação é preciso lembrar que tratamento psiquiátrico é algo relativamente recente, isto é, de 1970 para cá. Antes, os manicômios eram verdadeiras prisões porque muito pouco podia ser feito pelos pacientes. Na evolução dessa tragédia foram criados Serviços de acompanhamento ambulatorial, inclusive para o atendimento de crianças com a inclusão de serviços de psicologia, serviço social (CAPS), serviço de farmácia para destruição de medicamentos de manutenção etc. E os hospitais credenciados recebem diretamente os pacientes para internação.
A COVID-19 não veio sozinha. A quarentena está acompanhada da depressão e da ansiedade. Qual seria o tipo ideal de política de saúde pública mental nesse momento?
Não sei. Não temos precedentes. Imagino que as pessoas interessadas precisam estudar essa questão. É uma questão multidisciplinar. A psiquiatria não tem a resposta. Não é uma questão médica ou psiquiátrica simplesmente. Claro que a medicina e particularmente a psiquiatria (assim como outras áreas do conhecimento) terão contribuições a oferecer. Como a questão foi muito bem formulada “qual seria a política pública de saúde mental” a ser oferecida. Já podemos imaginar que não deve ser uma política de saúde que deixe de lado a recomendação da OMS que define ”saúde mental como um estado de bem-estar no qual o indivíduo é capaz de usar suas próprias habilidades, recuperar-se do estresse rotineiro, ser produtivo e contribuir com a sua comunidade”.
Muitos analistas, de distintas matrizes políticas e ideológicas, tem dito que o mundo não será o mesmo após a COVID-19. Para além do truísmo que a afirmação revela, não estaríamos, ao admitir que o vírus seja portador de uma mudança, nos iludindo, construindo um tipo de idealização que, apenas, teria como objetivo, nos conformar momentaneamente? O mundo pós COVID-19 será um mundo melhor?
Há um provérbio mais conhecido entre os Judeus que diz “todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam o bem”. Esse provérbio encontra-se também, embora modificado, na Bíblia. Claro que a experiência é profunda, extensa, importante, mas o vírus produz uma infecção que pode levar à morte. Mais nada! O que é que faremos com isso? O que cada pessoa fará com isso? O que os grupos humanos farão com isso? Não depende do vírus. Depende de maior ou menor desenvolvimento das pessoas envolvidas. O mesmo pode-se referir a um terremoto, uma inundação, à peste bubônica, à fome ou a um maremoto. A impressão que dá é que muitas pessoas não saberão aproveitar tudo que revelado (talvez, desvelado – retirado o véu). É possível que o Governo assim como muitas “autoridades” dos Governos não saberão aproveitar o país que foi revelado… o que será uma pena.