O Estado Social e a Saúde como Direito em tempos de Pandemia

Roberto Goulart Menezes

É Professor Associado II do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Doutor em Ciência Política com ênfase em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo. Professor visitante no Centro Giovanni Arrighi de Estudos Globais da Johns Hopkins University (2018-2019). Professor nos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI/UnB) e no de Ciências Sociais - Estudos Comparados sobre as Américas (PPG/ECsA/UnB). É pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU/CNPq/FAPESP), coordena o Núcleo de Estudos Latino-Americanos (NEL/IREL/UnB) e é coordenador adjunto do Eixo Razão de Ser da Integração e Conceituação de um Novo Marco Teórico da Integração da América Latina e Europa do Grupo de Reflexión sobre Integración y Desarrollo en América Latina y Europa (GRIDALE/Colômbia). É secretário-executivo da regional Centro-Norte da Associação Brasileira de Ciência Política (2019-2021) e Coordenador da Área Temática de Economia Política Internacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais (2019-2021). Coordenou o Curso de Graduação em Relações Internacionais da UnB (REL/2016-2018) e o Núcleo de Estudos do Mercosul do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (NEM/CEAM/UnB - 2013-2015). É membro da Coordenação da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Cultura e Desenvolvimento (Unesp). Líder do Grupo de Pesquisa NEL/IREL no CNPq e vice-líder do Grupo de Relações Internacionais do CEDEC/CNPq. É associado da ABRI (Associação Brasileira de Relações Internacionais), da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política) e da LASA. Temas de pesquisa: Economia Política Internacional, Integração Regional, Relações Internacionais da América do Sul/América Latina, Política Externa Brasileira, Política Externa dos Estados Unidos, Geopolítica, Desigualdade Global, Cooperação Internacional e Desenvolvimento.

Por Por Observatório do Estado Social, em 08/06/2020 [quarentena]

 

1 – O que a pandemia tem evidenciado sobre o Estado Social no Brasil? Qual a importância de um sistema único de saúde?

Em primeiro lugar a pandemia expôs ainda mais a profunda desigualdade social brasileira. Em pouco tempo milhões de trabalhadores/as perderam suas rendas. O governo Jair Bolsonaro relutou em adotar um auxílio emergencial aos trabalhadores/as, tendo proposto inicialmente o pagamento de três parcelas de R$ 200,00 cada. Ou seja, cerca de um dólar por dia! Diante da repercussão negativa, o Congresso rejeitou a proposta do Executivo e conseguiu aprovar o valor de R$ 600,00. Embora seja um valor aquém do necessário para socorrer de fato a população pobre do Brasil, ainda assim é três vezes mais que o valor defendido pelo Ministro da Economia Paulo Guedes. Porém, mesmo com toda tecnologia bancária e os novos aplicativos que facilitam e a realização e movimentação on-line de pagamentos, o governo Bolsonaro centralizou as operações na Caixa Econômica Federal. Isso resultou em grandes aglomerações nas agências e expôs a população mais necessitada ao risco de ser infectada. Demorou e muito para que outros bancos fossem acionados a fim de expandir a capacidade de atendimento. Outro problema recorrente, desde então, tem sido a demora na análise da documentação do cidadão para ser incluído na relação dos que podem receber o recurso. Cerca de 40 milhões de trabalhadores/as simplesmente não estavam em nenhuma base de dados do governo! Esse contingente invisível, um quinto da população brasileira, está entregue à própria sorte realizando as mais diferentes tarefas na economia informal. O Estado de Bem-estar social brasileiro que vinha sendo construído com muitas dificuldades desde a Constituição de 1988, sofreu um duro golpe com a aprovação da Emenda 95 no Governo Temer (2016-2018), que congelou os gastos públicos. Essa política de austeridade tem sido ampliada no Governo Bolsonaro aprofundando a estrutura de desigualdade no País. Convém lembrar que o governo federal mira a privatização de todos os serviços públicos, entre eles, saúde, educação e políticas públicas para a infância e juventude, entre outros. Em segundo lugar, a pandemia evidenciou a importância do Sistema Único de Saúde (SUS). É por conta dele que milhares de brasileiros/as estão sendo diagnosticados, recebendo o tratamento e a atenção necessária para enfrentar esse momento tão difícil da luta pela vida. São poucos os países do mundo que dispõem de um sistema sofisticado e universal como o SUS que é inspirado, de certo modo, no sistema inglês criado em 1948 -o NHS (National Health Service). O SUS só foi possível devido a articulação de centenas de movimentos sociais no Brasil, profissionais de saúde e lideranças do campo progressista comprometidas com o direito à saúde. O Sistema Único de Saúde é baseado nos princípios da equidade, integralidade e universalidade e conta com a participação popular através dos conselhos de saúde e conferências nacionais. O SUS é um patrimônio do povo brasileiro.

2 – O que a pandemia nos mostra sobre a relação entre desigualdade de renda e o acesso à saúde no Brasil?

Uma das cenas mais chocantes, embora seja difícil escolher uma em meio a tanto sofrimento, e ao mesmo tempo emblemática da desigualdade social e econômica em no Brasil é a imagem que mostra as classes abastadas de Belém contratando serviço de UTI aérea, quando o sistema de saúde na capital do Pará entrou em colapso. Esse fato mostra como no Brasil os ricos sempre se arranjam. Então quem pode arcar com os altos custos desse tipo de serviço sabe também que poderá reaver parte desses gastos através da renúncia fiscal possibilitada pela dedução integral de seus gastos na declaração do imposto de renda, pois não há limite para esse tipo de dedução. Isso contribuí para manter e ampliar a desigualdade de renda. Em relação ao perfil étnico-racial das vítimas novamente a desigualdade fica patente. Embora não tenhamos os dados desagregados de todas as vítimas da Covid-19 no País, os negros têm mais chances de morrer do que a população não-negra. De acordo com a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, os negros e as minorias étnicas são as mais atingidas no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo. O SUS possui um programa de distribuição de medicamentos que a população, em sua grande maioria, teria dificuldades em ter acesso a eles se não fossem fornecidos gratuitamente. Como o serviço é universal os ricos também usufruem tanto de medicamentos como tratamentos para as mais diversas doenças. A luta social é para que a saúde, desde a construção do SUS, em 1988, seja um direito e não uma mercadoria. Mesmo nos hospitais públicos de excelência no País criou-se a chamada segunda porta: o atendimento via plano de saúde. Embora seja obrigatório o reembolso dos custos do atendimento em hospitais públicos de pacientes que possuam planos de saúde é uma luta permanente para conseguir com que as operadoras de planos paguem os cofres públicos. Entre os casos de destaque no Brasil está a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação em Brasília. Totalmente público ele é procurado por pessoas de todas as classes sociais e regiões do Brasil. No entanto, os cortes impostos pela Emenda 95 e a diminuição do investimento público em saúde no País tem representado longas filas na rede de atendimento do SUS, dificultando o acesso aos exames médicos e a vagas para a realização de cirurgias de media e alta complexidade. Esse quadro se tornou mais dramático com a pandemia de covid-19. A situação só não é mais trágica porque o SUS possui uma capilaridade em todo o território nacional e dois terços da população recebe os cuidados de saúde através do Programa Saúde da Família.

3 – Como avalia a posição do Governo Federal frente à pandemia?

A pior possível. O Governo Bolsonaro desde o começo da pandemia revelou mais uma vez o seu desprezo pela ciência, pelo conhecimento e pela vida dos mais pobres. O primeiro caso registrado no País foi em 26 de fevereiro de 2020, na quarta-feira de cinzas, e a primeira morte ocorreu em 12 de março. A equipe do Ministério da Saúde foi se preparando para atuar junto aos prefeitos e governadores a fim de mapear os cenários e a necessidade de se agir rápido para evitar ao máximo a propagação do vírus pelo país afora. O Presidente da República e seus assessores palacianos não queriam nem ouvir falar em isolamento social. Diariamente ele segue dando mostras de que a única coisa que importa para ele e seu governo é a economia. As pessoas podem morrer, mas a economia não pode parar! Em pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão desdenhou da gravidade da pandemia classificando-a como “uma gripezinha”. Depois em entrevista a imprensa declarou que o “brasileiro pula no esgoto e não acontece nada”. Em um país onde metade da população não possuí acesso ao saneamento básico e convive diariamente com a ameaça de inúmeras doenças causadas pela falta de água potável, tratamento de esgoto e coleta de lixo adequadas, o presidente recorre a estereótipos sobre o povo brasileiro para esquivar-se de suas responsabilidades. Ele não está na defesa de que a economia, ou melhor, o lucro está acima da vida. Apoiadores no meio empresarial expressaram essa preocupação com afirmações, tais como: o país não pode parar por causa de 7 mil mortos ou o que são 7 mil mortos para um país de 210 milhões de habitantes? Mesmo com o agravamento da situação sanitária causada pela propagação do vírus, o presidente insistiu na politização do tema e tornou-se um obstáculo para o enfrentamento da pandemia. De costas para a realidade, passou a imitar o comportamento de Donald Trump. Depois de sabotar o trabalho do Ministério da Saúde, acabou por demitir o Ministro da Saúde Henrique Mandeta em plena subida abrupta do número de casos no país e com isso foi minando a equipe do Ministério. Hoje, inicio de junho de 2020, o Brasil não tem um titular na pasta da saúde e o Ministério está tomado por militares que nem da área de saúde são. Informações desencontradas, declarações de senso-comum e falta de transparência resultam do apagão que se abate sobre o Ministério da Saúde. E tudo isso é servido ao público com ares de patriotismo e compromisso com a vida de todos! No momento em que o Brasil se tornou o epicentro da doença no mundo e a previsão é que antes do fim de junho de 2020 o Brasil atinja a marca desoladora de um milhão de casos. As imagens do Presidente da República estimulando o descumprimento do isolamento social, jogando, sobretudo, com a vida dos mais pobres no País e o desprezo pela morte de mais de 30 mil brasileiros é um exemplo claro de necropolítica. O descaso das autoridades de saúde com as populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas e demais povos tradicionais é um exemplo disso. Enquanto isso os grileiros, madeireiros, mineradores e garimpeiros invadem os territórios dessas populações, com o apoio indisfarçado do Governo Federal, e disseminam a covid-19. O resultado tem sido o aumento da violência contra esses povos. Historicamente o direito à vida não tem sido assegurado no Brasil, e, nesse momento, essa violação ganha proporções assustadoras.

4 – O Brasil tem obtido êxito no enfrentamento ao COVID-19? Como a experiência brasileira compara a de outros países?

O Brasil tem obtido êxito parcial, até o momento, no enfrentamento da pandemia apesar de todas os obstáculos impostos pelo Governo Bolsonaro. Com o isolamento do País no cenário internacional e, praticamente fora, da cooperação internacional pelo desenvolvimento de uma vacina, o Brasil sofre também com o negacionismo do Executivo. Internamente, o esforço de governadores e prefeitos é que tem conseguido segurar parte da disseminação do vírus. A politicagem do presidente Bolsonaro e o uso dos recursos do Ministério da Saúde para retardar a ajuda aos governadores que são críticos a sua gestão é algo macabro. A ciência brasileira é quem tem suprido, através dos centros de pesquisa e das universidades públicas, a inércia do governo federal, estabelecendo alianças com centros de pesquisa no país e no exterior. Na Espanha e Irlanda, por exemplo, os leitos de UTI dos hospitais privados foram declarados públicos enquanto durar a pandemia. No Brasil, os planos de saúde fazem lobby para que governadores comprem as vagas ociosas. E isso em pleno estado de calamidade pública! A preocupação do governo Bolsonaro não é apenas com o dano ao seu governo e à sua imagem política que a pandemia pode causar. O fato concreto é que o presidente e seus ministros estão muito aquém dos problemas concretos do País. A preocupação do governo federal é com a possibilidade de amadurecimento da consciência social brasileira acerca da necessidade de se repensar as políticas ultraliberais de seu governo, de se valorizar o que é público e o bem comum (como o SUS). Em suma, Bolsonaro e seu governo não estão à altura do chamamento feito pela Alta Comissário de Direitos Humanos, Michele Bachelet: “Em última instância, os esforços para enfrentar a COVID-19 e iniciar o processo de recuperação só serão bem-sucedidos se os direitos de todos à vida e à saúde forem protegidos, sem discriminação”.